quinta-feira, 25 de julho de 2013

Virgem, Maria?

Vou lhes contar a história de Maria, a mulher enganada. Eu deveria alertar-lhes dizendo que a historia de Maria é a história de muitas brasileiras, que isso ainda acontece não apenas em pequenas cidades, não somente em famílias simples, esta história acontece em qualquer lugar onde ainda se louve o patriarcado, mas creio que por si só perceberá como é comum essa historia.
Teve o primeiro namoradinho, depois outro e outro. Cresceu, teve um, dois, três namorados. Até que com um, a paixão foi tão intensa, houve algo além do que denominavam de amor, houve desejo. Poderia relatar-lhes pormenores dessa história, afinal não há ninguém que tenha Maria como conhecida que não saiba esses pormenores, sem que ela nunca tenha confirmado nada. Mas não quero ser mais um a expor suas intimidades, expor sua vida.
Conto-lhes apenas o essencial para que não sejamos tolos a ponto de afirmar que hoje mulheres como Maria possuem liberdade.  
Pois com esse namorado Maria acreditava que seria para sempre, seria para valer, ter filhos, casar e ser feliz. Essas coisas que moçoilas entre os vinte e vinte e cinco anos sempre pensam. Ele lhe parecia sincero, parecia um homem respeitador, honesto. Então seguiram o namoro.
Maria desde cedo começara a trabalhar, antes era apenas mais uma atendente da loja, mas sua dedicação era tamanha que se tornara gerente de setor. Estava para terminar a graduação que pagava muito esforçadamente, e um curso de aperfeiçoamento indicado pela empresa onde trabalhava. Seus pais pareciam ter orgulho dela.
Ainda não tinha condições de casar, isso era certo, então seguia morando com os pais em uma casa modesta não muito distante do centro da cidade. Moravam ali há muito tempo, talvez desde que nascera, mas por certo crescera ali, era conhecida de todos, embora não gostassem verdadeiramente dela, há pessoas que não gostam daqueles que progridem.
O namoro ia seguindo, seguindo muito bem, obrigado. Faziam planos, sorriam, pareciam felizes por estarem juntos. Mas o que um conservador bufão qualquer diria, “colocaram a carroça na frente dos bois”. Pois é, Maria “perdeu a virgindade”.
Para ela, não havia nada de errado com o acontecimento, era uma moça esclarecida, que acreditava na liberdade sobre seu corpo. Talvez não tivesse um conhecimento cientifico tão apurado para falar sobre dominação de gênero e essas coisas todas que um sociólogo diga com tanta propriedade, mas na sua forma simples de pensar ela sabia que não havia nada de errado.
Devido ao fato, ela não achou que devesse adiantar ideias sobre casamento, isso sim seria a seu ver colocar uma carroça a frente dos bois, então seu namoro seguiu sendo o mesmo, agora apenas cuidando-se para que nada inesperado acontecesse.
Mas, não sei ao certo como, seus pais tiveram conhecimento sobre o fato, e não apenas seus pais, mas os conhecidos também. Todos os méritos de Maria desapareceram de uma só vez. Não importavam suas conquistas, apenas importava o que havia acontecido, importava agora que não tinha valor, era produto sem lacre, era lixo.
Seus pais chamaram-na para uma conversa, mas a conversa não foi tão boa assim, disseram a ela que ninguém mais iria querer ela para um casamento, e que se talvez um dia cassasse, sofreria a vida inteira por não ser virgem quando do casamento. Disseram que aquele rapaz que hoje a namorava não iria por certo casar-se com ela se isso fosse verdade. Que mulheres tinham que conservar-se virgens até o casamento, essa era a ordem natural das coisas. Por fim, seu pai, ainda esperançoso de que tudo fosse mentira, perguntou:
-Virgem, Maria?
-Não virgem Maria, respondeu Maria e baixou a cabeça.
Então todo o discurso continuou, mas ela não conseguia entender porque o destino de homens e mulheres era tão diferente, porque ela, logo ela que todos diziam fazer parte do “sexo frágil” tinha que ser mais forte a ponto de remar contra a verdadeira ordem natural. Não conseguia compreender porque agora era menos se ela, Maria, não se sentia menos que ninguém.
Seus pais falaram então de casamento. Chamaram o rapaz para conversar, mas ele parecia não querer casar-se. Maria não sabia se aquilo tudo era verdade. Como poderiam todas aquelas coisas estarem acontecendo? O rapaz se explicara dizendo que pretendia casar-se sim com Maria, mas não naquele momento, não tinham condições ainda para isso.
Foi assim que ele deu um boa noite a todos e retirou-se. Quando este saiu, os pais de Maria voltaram a lhe dizer todas as coisas ditas anteriormente e disseram-lhe que a recusa a casamento imediato era a maior prova de que lhe diziam a verdade.
Em meio ao desgosto, pai e mãe retiraram-se para dormir.
Maria tomou banho, pegou sua melhor roupa, vestiu-se. Passou-se do perfume mais delicado, maquiou-se como se fosse a uma festa. Calçou um salto alto que nunca usara. Analisou seu tamanho e o tamanho da porta do quarto. Era maior que ela, bastava. Até uma porta podia ser mais que ela naquele momento. Penteou os cabelos, prendeu-os com uma presilha de pedrinhas. Parecia bela.
Foi assim que foi a cozinha, apanhou-se de uma faca afiada e manchou seu vestido de sangue.
De manha quando sua mãe levantou-se para aprontar o café, soltou um grito aterrorizado. Havia uma bela moça morta no chão da cozinha, e uma frase escrita com sangue na parede: “terminei de retirar o lacre”.
Logo todos sabiam do destino triste de Maria. Mas o que ninguém sabia era que Maria era uma moça que havia sido enganada, disseram-lhe que não tinha mais valor, disseram-lhe que era produto, que não havia mais nada para ela, e ela acreditou. Maria, a enganada. Maria, a não virgem. Maria, a suicida.
Ela morreu como se fosse a um baile. Sua historia é contada como se fosse mais uma fofoca de rua. E muitas outras mulheres ainda seguem esse mesmo destino, sem saber que meia liberdade não é liberdade.
E hoje, em algum lugar, achando ser virgindade algo mais que dominação e opressão, alguém ainda pergunta:
- Virgem, Maria?

E toda a coisificação de uma mulher continua...

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