Vou
lhes contar a história de Maria, a mulher enganada. Eu deveria alertar-lhes
dizendo que a historia de Maria é a história de muitas brasileiras, que isso
ainda acontece não apenas em pequenas cidades, não somente em famílias simples,
esta história acontece em qualquer lugar onde ainda se louve o patriarcado, mas
creio que por si só perceberá como é comum essa historia.
Teve
o primeiro namoradinho, depois outro e outro. Cresceu, teve um, dois, três namorados.
Até que com um, a paixão foi tão intensa, houve algo além do que denominavam de
amor, houve desejo. Poderia relatar-lhes pormenores dessa história, afinal não há
ninguém que tenha Maria como conhecida que não saiba esses pormenores, sem que
ela nunca tenha confirmado nada. Mas não quero ser mais um a expor suas
intimidades, expor sua vida.
Conto-lhes
apenas o essencial para que não sejamos tolos a ponto de afirmar que hoje
mulheres como Maria possuem liberdade.
Pois
com esse namorado Maria acreditava que seria para sempre, seria para valer, ter
filhos, casar e ser feliz. Essas coisas que moçoilas entre os vinte e vinte e
cinco anos sempre pensam. Ele lhe parecia sincero, parecia um homem
respeitador, honesto. Então seguiram o namoro.
Maria
desde cedo começara a trabalhar, antes era apenas mais uma atendente da loja,
mas sua dedicação era tamanha que se tornara gerente de setor. Estava para
terminar a graduação que pagava muito esforçadamente, e um curso de
aperfeiçoamento indicado pela empresa onde trabalhava. Seus pais pareciam ter
orgulho dela.
Ainda
não tinha condições de casar, isso era certo, então seguia morando com os pais
em uma casa modesta não muito distante do centro da cidade. Moravam ali há
muito tempo, talvez desde que nascera, mas por certo crescera ali, era conhecida
de todos, embora não gostassem verdadeiramente dela, há pessoas que não gostam daqueles
que progridem.
O
namoro ia seguindo, seguindo muito bem, obrigado. Faziam planos, sorriam,
pareciam felizes por estarem juntos. Mas o que um conservador bufão qualquer
diria, “colocaram a carroça na frente dos bois”. Pois é, Maria “perdeu a
virgindade”.
Para
ela, não havia nada de errado com o acontecimento, era uma moça esclarecida,
que acreditava na liberdade sobre seu corpo. Talvez não tivesse um conhecimento
cientifico tão apurado para falar sobre dominação de gênero e essas coisas
todas que um sociólogo diga com tanta propriedade, mas na sua forma simples de
pensar ela sabia que não havia nada de errado.
Devido
ao fato, ela não achou que devesse adiantar ideias sobre casamento, isso sim
seria a seu ver colocar uma carroça a frente dos bois, então seu namoro seguiu
sendo o mesmo, agora apenas cuidando-se para que nada inesperado acontecesse.
Mas,
não sei ao certo como, seus pais tiveram conhecimento sobre o fato, e não apenas
seus pais, mas os conhecidos também. Todos os méritos de Maria desapareceram de
uma só vez. Não importavam suas conquistas, apenas importava o que havia
acontecido, importava agora que não tinha valor, era produto sem lacre, era lixo.
Seus
pais chamaram-na para uma conversa, mas a conversa não foi tão boa assim,
disseram a ela que ninguém mais iria querer ela para um casamento, e que se
talvez um dia cassasse, sofreria a vida inteira por não ser virgem quando do
casamento. Disseram que aquele rapaz que hoje a namorava não iria por certo
casar-se com ela se isso fosse verdade. Que mulheres tinham que conservar-se
virgens até o casamento, essa era a ordem natural das coisas. Por fim, seu pai,
ainda esperançoso de que tudo fosse mentira, perguntou:
-Virgem,
Maria?
-Não
virgem Maria, respondeu Maria e baixou a cabeça.
Então
todo o discurso continuou, mas ela não conseguia entender porque o destino de
homens e mulheres era tão diferente, porque ela, logo ela que todos diziam
fazer parte do “sexo frágil” tinha que ser mais forte a ponto de remar contra a
verdadeira ordem natural. Não conseguia compreender porque agora era menos se
ela, Maria, não se sentia menos que ninguém.
Seus
pais falaram então de casamento. Chamaram o rapaz para conversar, mas ele
parecia não querer casar-se. Maria não sabia se aquilo tudo era verdade. Como
poderiam todas aquelas coisas estarem acontecendo? O rapaz se explicara dizendo
que pretendia casar-se sim com Maria, mas não naquele momento, não tinham condições
ainda para isso.
Foi
assim que ele deu um boa noite a todos e retirou-se. Quando este saiu, os pais
de Maria voltaram a lhe dizer todas as coisas ditas anteriormente e disseram-lhe
que a recusa a casamento imediato era a maior prova de que lhe diziam a
verdade.
Em
meio ao desgosto, pai e mãe retiraram-se para dormir.
Maria
tomou banho, pegou sua melhor roupa, vestiu-se. Passou-se do perfume mais
delicado, maquiou-se como se fosse a uma festa. Calçou um salto alto que nunca
usara. Analisou seu tamanho e o tamanho da porta do quarto. Era maior que ela,
bastava. Até uma porta podia ser mais que ela naquele momento. Penteou os
cabelos, prendeu-os com uma presilha de pedrinhas. Parecia bela.
Foi
assim que foi a cozinha, apanhou-se de uma faca afiada e manchou seu vestido de
sangue.
De
manha quando sua mãe levantou-se para aprontar o café, soltou um grito aterrorizado.
Havia uma bela moça morta no chão da cozinha, e uma frase escrita com sangue na
parede: “terminei de retirar o lacre”.
Logo
todos sabiam do destino triste de Maria. Mas o que ninguém sabia era que Maria era
uma moça que havia sido enganada, disseram-lhe que não tinha mais valor,
disseram-lhe que era produto, que não havia mais nada para ela, e ela
acreditou. Maria, a enganada. Maria, a não virgem. Maria, a suicida.
Ela
morreu como se fosse a um baile. Sua historia é contada como se fosse mais uma
fofoca de rua. E muitas outras mulheres ainda seguem esse mesmo destino, sem
saber que meia liberdade não é liberdade.
E
hoje, em algum lugar, achando ser virgindade algo mais que dominação e opressão,
alguém ainda pergunta:
-
Virgem, Maria?
E
toda a coisificação de uma mulher continua...
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