quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Metrô lotado

Metrô lotado!
Era esse o seu pensamento enquanto fechava as portas e verificava se as janelas estavam igualmente fechadas.
Metrô lotado!
Pegou a bolsa, as chaves, e o caderno da faculdade.
Metrô lotado!
Enquanto caminhava em direção a estação via as pessoas passarem como se não se notassem, como se estivessem sozinhas naquela imensidão da cidade.
Metrô lotado!
Comprou o bilhete e esperou atentamente a abertura da porta.
Metrô lotado!
Sim, estava muito lotado, não tinha lugar para sentar-se. Em pé, segurando o caderno, sem poder movimentar-se adequadamente, esperava pela estação em que desceria. Foi então que sentiu apertarem sua bunda. Tentou olhar para trás, não conseguiu identificar quem seria.
Novamente, sentiu quando foi apalpada. Olhou novamente, mas de que adiantaria? O metrô estava lotado como previra. Não tinha muito para onde ir e se livrar do assedio. O cara chegou mais perto, sorriu para ela. Um sorriso nojento, um sorrido malvado. Apalpou-a novamente e ela não sabia o que fazer.
As pessoas pareciam não ver o que estava acontecendo. As pessoas não pareciam ligar para o que acontecia. Ela não tinha para onde ir. Olhou para os lados, enquanto sentia que algo mais esfregava-se a sua calça, ela pensava em gritar. Pensava em correr dali.
Mas o metrô estava lotado!
Lotado de pessoas que fingiam não ver o que estava acontecendo. Lotado de pessoas que não se preocupavam, não se importavam. Lotado de pessoas indiferentes, pessoas distantes, olhares e pensamentos além daquele metrô.
Chegou à estação. As pessoas rapidamente começavam a sair. Esvaíam-se junto com a sua dignidade. Saiu da estação e começou a descer a rua. Mas quanto mais descia, mais parecia menos. Quanto mais descia não podia esquecer o assedio, a violência.  E quanto mais andava, mais regredia enfim. Suspirou e pensou para si:
Metrô lotado, é sempre assim...

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Flor do sertão



Mais parecia sonho que realidade. Era como viver o sonho, e não sonha-lo deitada em meio ao sono. Parecia o homem que sempre esperara enquanto ficava debruçada na janela, naquele sol quente de sertão...
...
Era uma moça bonita com suas tranças negras e longas jogadas por cima dos seios. Era bonita com sua forma simples de se vestir. Era simples em sua nenhuma maquiagem, era bela e era virgem. Tinha seus 17 anos de idade, nunca namorara, nunca beijara um só rapaz. Não lhe deixavam sair à rua sozinha em fins de tarde, tinham medo que se desencaminhasse por aquelas ruas sujas, quentes, feias de Lumadeus, interior, sertão, mas nunca lhe disseram o que era se perder se ela conhecia todos os caminhos.
Um dia faltou feijão. Estava sozinha com a mãe que se dividia em lavar roupas e fazer a comida. Não teve jeito, a moça bonita de Lumadeus teve que ir sozinha à venda que ficava a duas esquinas de casa. Não sabia quanto custava um quilo de feijão, mas sua mãe lhe dissera que aquele tanto de dinheiro era suficiente e que seu Armando lhe daria ainda troco. Colocou os pés para fora de casa e quase instintivamente esperou que alguém viesse para acompanhá-la.
Lembrou-se que iria sozinha e sentiu um frio na barriga. “Ela é tão bobinha”, lembrou-se da mãe dizendo à comadre algumas semanas atrás quando esta pedira para leva-la a um aniversário na cidade vizinha. Deu alguns passos, cumprimentou alguns conhecidos com a cabeça, tinha medo de falar sozinha. Andou mais um pouco. Sentiu alguma coisa diferente, boa. Seria isso liberdade que leu em alguns livros?
Chegou à mercearia e pediu a seu Armando o quilo de feijão que sua mãe precisava para terminar o almoço. Se Armando parecendo não ouvi-la permaneceu conversando com um estranho. Ela não se atreveu a olha-lo, tinha medo. Pediu pressa, sua mãe precisava terminar o almoço! Seu pai não gostava de chegar em casa com almoço ainda por fazer.
-Mora por aqui há quanto tempo? Nunca te vi.
Estremeceu com aquela iniciativa de conversa. Poderia falar com desconhecidos? Era um rosto desconhecido, seria ele novo por ali? Seria um daqueles desvirtuadores de que seus pais costumavam falar? Mesmo com essas duvidas, explicou que vivia ali desde que nascera, que morava a duas esquinas dali.
Voltou a sua casa com o feijão. Sua mãe terminou o almoço. E pela tarde voltou a inclinar-se na janela daquele sertão. Voltou a sonhar naquele sertão. Eis que distraída olhando as nuvens do céu ouviu um “Boa tarde” de uma voz conhecida. Voltou seus olhos para terra, era o rapaz do armazém. Retribui a saudação com um sorriso.
Mais tarde ele voltou a passar pela sua janela e cumprimenta-la novamente. Sentiu um frio na barriga quando ele se aproximou para interpor uma conversa. Era uma mistura de alegria, surpresa e medo. Aceitou a conversa, ate o momento em que ouviu sua mãe chama-la com tom de desaprovação. Descumprimentou o rapaz e entrou correndo.
Explicou que conversava pela janela com um rapaz bem afeiçoado que conhecera no armazém pela manha. Sua mãe se limitou a um “hum” que demonstrava a insignificância de suas explicações, estava errada e pronto.
Naquele dia não pode mais voltar à janela. Mas os dias se passaram e ele insistia em vir a sua janela, cumprimenta-la, descumprimenta-la quando ia embora. E ela passou a esperar todos os dias que ele viesse a sua janela. Passou ate mesmo a pensar que poderia ser um daqueles amores românticos dos livros de Jose de Alencar que a vizinha da frente lhe emprestara no inverno passado quando não podia ficar na janela sem que o vento sem chuva viesse em seu rosto incomodando-a.
Um dia enquanto olhava o dia pela janela o rapaz desconhecido do armazém assobiou chamando-a para fora de casa. Poderia ir sem aborrecer sua mãe? Aquele frio na barriga novamente a lhe tomar. Um desejo intenso de sair por aquela porta, mas faria zoada. Olhou para todos os cantos, não passava ninguém. Pulou a janela, estava do lado de fora!
...
Mais parecia sonho que realidade. Era como viver o sonho, e não sonha-lo deitada em meio ao sono. Parecia o homem que sempre esperara enquanto ficava debruçada na janela, naquele sol quente de sertão.
Ele a beijou, e sussurrara-lhe ao ouvido palavras doces e bonitas que fizeram com que ela se convencesse de que este era o amor de sua vida. Trocaram mais alguns beijos e ela voltou para casa. Sua mãe nem percebera nada.
Todos os dias quando sua mãe estava pelos fundos ele a chamava e ela pulava a janela e ia para os braços daquele que fora seu sonho e agora sua realidade. Não havia um dia sequer que não ouvisse suas palavras doces, sentisse suas caricias, provasse do seu beijo.
Parecia sinceridade aquele olhar. Mas um dia ele insistiu que ela conhecesse sua casa, ele morava um pouco longe dali, mas não tanto que não pudessem ir a pé. Foram. Quando chegaram, ele fechou a porta e beijou-a. Beijou-a novamente, acariciou seu rosto e passou a olha-la estranhamente. Ela estremeceu. Entrou ele a levou mais para dentro, quando olhou estavam num quarto, dele possivelmente. Sua mãe parecia não aprovar meninas que adentravam quartos masculinos. Mas os beijos eram tão bons, não queria parar. Ele acariciou seus seios e passou a tirar sua roupa vagarosamente.
Ela mais uma vez se questionou se seria uma atitude correta deixar que aquilo acontecesse, mas se permitiu. Estavam já numa cama, dele possivelmente. Ele abriu-lhe as pernas devagar, ela não entendia, ele forçou algo nela, doía, ela tinha medo. Mas as caricias eram tão boas. Algo a adentrou, sentiu a dor enquanto aquele algo a adentrava, e adentrou-a novamente, e novamente. E ele a beijava, e fazia força sobre ela. E ela desesperada deixava com que tudo aquilo acontecesse. O que mais queria era que acabasse. Queria novamente pular a janela, queria voltar para casa. Sua mãe não aprovaria tudo aquilo, sua mãe não gostaria. Mas por mais estranho que parecesse, gostara.
Tentou não demonstrar desespero quando tudo acabou. Ele perguntou se ela havia gostado, mas ela não sabia o que sentira. Viu um pouco de sangue a escorrer por dentre as pernas, seria menstruação novamente num mesmo mês?
No caminho para casa foi juntando algumas conversas que ouvira em sua casa e começou a se perguntar se ainda era o que diziam virgem. Mas sabia que virgindade só se perdia quando se casava, talvez fosse um estado de ser que se findava com o sim do altar. Mas algo por dentro sinalizava que não, que não era mais virgem, quis perguntar.
- Sou ainda virgem? – o rapaz desconhecido do armazém olhou-a, parecia olhar de pena, talvez. Passou as mãos pelos seus cabelos e disse:
-Sim, é virgem, minha bela.
Ela não se convenceu daquelas palavras, e com um pouco de dificuldade pulou a janela. No outro dia esperou que ele passasse pela sua janela, diria que não iria na sua casa, ficariam ali pelas redondezas. Mas ele passou e não olhou nenhuma vez sequer para sua janela.
O conceito é exatamente aquele que não se deu. A verdade é justamente aquela que se dispensou. A realidade que se abriu em flor, murchou e não se percebeu.
Ele não era o rapaz que sempre esperara, continuou a esperar, e esperar naquela mesma janela, sem nunca sair sozinha para aquelas ruas do sertão.
g

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Redenção

Era um dia chuvoso na primavera de 1756 e Adélia acordou feliz, após ter consumado a primeira noite de amor com seu único e eterno homem, o negro forte e bonito José. Levava uma vida miserável trabalhando incansavelmente na plantação, na casa da sinházinha e na senzala, mas apresentava um sorriso enorme que só sonhadores podem ter. Beirava os 15 - pelo menos é o que lhe diziam os mais velhos - e carregava no peito todo amor que nunca havia recebido até aparecer José, comprado da fazenda vizinha e cobiçado por todas as outras negras. De ancas largas, cabelos pretos cacheados e cheios, formosa na flor da juventude, Adélia parecia imersa em um mundo encantado, imaginado por ela pra esconder toda a realidade degradante que levavam. Trabalhou como nunca, ajudou Ana e Sinhá Vitória a se vestir para ir a missa, aprontou as galinhas para o jantar e limpou as feridas de Damião -açoitado a mando de Coronel Antônio. Mas nem o cansaço lhe tirava a felicidade, aquele era o melhor dia de sua vida, e ah, José agora era seu, só seu, pra sempre! E nada mais lhe importava. Mas veio a noite, veio o chamado da Casa Grande, veio o Coronel Antônio, veio os medos, o animal-homem. Veio o monstro a lhe arrancar a blusa, a invadir seu corpo, a lhe tomar seu sorriso e sua felicidade. Veio o sangue entre as pernas, veio a humilhação. E veio a dor que nunca sentira antes, veio a realidade a rasgar seus sonhos, veio bater a sua cara o fim da fantasia. Estava agora no chão da cozinha, jogada como bicho, emaranhada, soluçando em choro silencioso, oca, sem vida, sozinha. Seu olhar alcançou a faca em cima da mesa, veio a força e veio novamente o sangue. Seu coração rasgado de dor agora rasgava-se de faca. Veio José, delirava Adélia, balbuciava gemidos quase inaudíveis, José gritava, jurava vingança, mas a dor vinha ainda mais. - Eu te amo, eu te amo! foi o que conseguiu dizer e tudo se apagou. Tudo sumiu. E José dizia não me deixe, e eu tambem te amo, e não posso viver sem você, e não era vingança, não era ódio, mas era amor, amor o consumia, e ele arrancou a faca do peito de sua amada e cravou na própria alma, no próprio corpo, em busca de seu amor, em busca de sua mulher. E veio o sangue, um rio de sangue, uma união de sangue. E o sangue dos dois se misturaram, e os corpos mortos abraçados, selados num beijo de morte, jaziam no chão da cozinha, e a primavera se enchia de cores, e veio a chuva e veio o nada, veio o reencontro, veio a redenção. E as almas vagaram juntas rumo ao paraíso, e nada mais importava, e tudo era luz, e tudo era fantasia, e tudo era sonho de Adélia, e tudo era belo e tudo era amor, e delírio. E José era seu, ah, era seu, pra sempre, pra sempre!



[Escrevi esse texto em 2011, e sei que meio que foge aos padrões do blog, mas acho que foi uma das coisas mais bonitas que já escrevi até hoje. Era 1756, mas podia perfeitamente ser 2013. Adélia, assim como a personagem do 1° texto, são só mais uma das mulheres coisificadas, usadas e massacradas por um machismo lixo que ainda encontra-se arraigado em nossa sociedade.]

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Refeição violenta

Era fim de relacionamento. Não havia como esconder, eles apenas postergavam. Como separar-se era algo novo para eles, decidiram que não iriam logo oficializar as coisas. Deixaram tudo no informal.
No inicio ele ainda ficou algumas semanas na mesma casa, tinham filhos, era bom ir aos poucos, eles poderiam se assustar. Depois, ele arrumou um lugar para ficar. Ficava perto dali, segundo ele era melhor para que pudesse ver os olhos. Ela achou certo assim, não queria que perdessem o contato.
As crianças ficaram tristes com a separação. O filho do meio, que tinha apenas três anos ainda não entendera o porquê do pai ter saído de casa, e nem entenderia por um bom período de tempo. Ela estava se acostumando aos poucos a essa vida de separada. Não era fácil não ter mais amparo na hora em que precisava urgentemente de um pacote de feijão. Mas trabalhava, estava tudo bem. E ele ajudava nas despesas.
Mas o tempo foi passando e ela começou a achar que era hora de pedir o divorcio. Tinha se apaixonado por um rapaz, achava que não havia problema. Seu ex-companheiro sempre andava as voltas com mulheres, porque ela não podia relacionar-se novamente?
Quando pediu o tal divorcio a reação dele fora boa, disse que ia ver qual o procedimento que utilizariam para isso, e perguntou por que ela queria tanto o divorcio se estava tudo bem.
- Quer casar novamente? Nem sabia que estava com alguém! – ele falou fitando-a nos olhos. Expressão seria, mas logo depois relaxou a musculatura do rosto e sorriu pela ausência de resposta dela.
Já fazia mais de dois meses que ela pedira a ele que ajeitasse os papeis. Ele não dera resposta desde então. Não contribuía mais com as coisas da casa. E vez ou outra ainda aparecia para almoçar e jantar, assim, como quem quer vigiar alguma coisa.
Havia algo errado? Chegou a achar que ele estava com ciúmes. Sorriu com o canto de boca. Tinha aquela boba vaidade do ciúmes. Pena que o rapaz com quem estava saindo à época em que pedira o divórcio não estava mais com ela, achara muito uma mulher separada com três filhos pequenos, não queria comprometer-se tanto assim. Achou que a próxima vez que o ex-marido aparecesse, iria perguntar sobre o divorcio novamente.
Estava com a filha mais nova no colo quando o ex apareceu perto da hora do almoço. Iriam comer um frango que comprara as pressas fiado na granja da esquina, porque se deparou sem nada para comerem. A campainha tocou. Segurando a filhinha foi atender. Era a vizinha que gostaria de saber como fazer uma inscrição para o Enem pela internet. Não poderia sair para fazer, os filhos estavam todos em casa, a menor estava gripada, e o pai não se achava mais na obrigação de tomar conta dos filhos, explicou. Mas mesmo assim, ensinou-a a realizar a inscrição e se despediu. Quando se voltou para a cozinha, viu que o ex-marido havia comido todo o frango. O que comeria com os filhos no almoço?
Sentiu a raiva subir-lhe. Ele não contribuía com nenhuma despesa há meses e ainda se sentia no direito de comer todo o almoço? O que seus filhos comeriam? Perguntou a ele. Ele riu e disse que ela fizesse outra coisa. Ela explicou que não tinha mais nada para comer! Que ignorância comer um frango inteiro sozinho!
- Pois trabalhe mais para comprar mais comida, sua Va*****da!
Ela não estava entendendo a reação dele. Continuou tirando satisfação.
-Sua p**a! Fica ai atrás de homem e não trabalha para comprar comida. Cach***a! Va*****da desgraçada! Joga meu nome no lixo! Está pensando o que? Que eu vou deixar todos irem de mim pela rua? Eu te mato! Te mato sua desgraçada! Te furo todinha!
- Cala a boca! – ela gritava – Respeite a mim e a meus filhos! – os dois meninos que estavam no quarto saíram assustados para a sala. A menina chorava no colo da mãe.
-Pensa que vai me desonrar? Eu te mato antes. Eu quebro você todinha! – foi ai que ele deu o primeiro murro nela. A menina chorava mais alto ainda. Os filhos assustados.
O mais velho tentou impedi-lo. Mas foi atirado sobre o sofá.
- Não se meta. Não se meta! Não se meta que sobra para você também!
O mais novo saiu correndo, chorando, queria a mãe. Mas a mãe não podia socorrê-lo, estava com a pequena no colo e recebia pancadas e xingamentos um atrás do outro.
O filho mais velho saiu pela porta e desceu as escadas desesperado, precisavam de ajuda! A mãe percebendo que o mais novo seguia o irmão achou que deveria sair também, tentou escapar pela escada, mas em excesso de raiva ele empurrou-a escada à baixo com a menina no colo.
Por sorte, a pequena não tivera nada, nenhum arranhãozinho. Mas chorava, chorava muito. Quanto à mãe, não teve tanta sorte assim, recebera muitas pancadas no rosto antes de cair, e mais alguns enquanto cai da escada. Foi parar no hospital. A policia que passava por ali na hora do acontecido foi chamada pelos meninos quando saíram correndo de casa, e então o ex-marido foi preso em flagrante. Pouco tempo depois pagou fiança e voltou a conviver perto deles.
A mulher saiu do hospital no mesmo dia, procurou ajuda na delegacia, mas achava que não aconteceria novamente, fora apenas um ataque de ciúmes. A vida continuou. Ia tudo bem, até que ela arrumou outro companheiro, e o ex-marido começou a incomoda-los novamente.

Percebeu então que não era fome que fazia ele comer todo um frango, não era amor que fazia ele sentir ciúmes dela. Ela e o frango eram coisas para ele, e por não o pertencerem, ele não deixava que fossem de mais ninguém. Mas ela não era um frango morto, assado e temperado, ela era gente e não deixaria que ele acabasse com ela entre três garfadas. Então, foi novamente à delegacia, dessa vez decidida, não era um frango, era gente.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Cada um que saiba o tamanho das calcinhas que usa



Podia dizer que aquele era um dia estressante. Acordara fora do horário. O carro estava quebrado. Levara os meninos atrasados para a escola. Fora repreendida pelo atraso no trabalho, e agora uma senhora extremamente chata se achava no direito de fazer troca de calcinhas quando havia um aviso enorme na loja avisando que este tipo de troca não podia ser feita.
Era difícil ser solteira aos 32 anos de idade. Era difícil ser mãe solteira de dois filhos. Era difícil. Sua avó lhe avisara, tinha que fazer bom casamento. Uma mulher sozinha era a pior coisa que tinha! Mas conseguia levar as coisas, até agora tinha conseguido, era o que importava.
-Minha senhora, não posso ajuda-la, são normas da loja, não fazemos este tipo de trocas.
A mulher olhou o porta-retratos na sua mesa e perguntou:
-Seus filhos?
-Sim – ela respondeu achando que a mulher desistira.
- Hum, mãe solteira, vocês são todas assim – a mulher disse essas palavras olhando para sua mão esquerda.
Espantou-se com a comparação: que relação absurda era essa que ela fazia? Olhou-a como se pedisse uma explicação para o comentário.
- Não saio daqui sem fazer a minha troca!  - e realmente não saiu. Sentou-se um pouco mais afastado e avisou que chamassem o dono do local, uma mera gerente, mãe solteira não a faria desistir do seu direito.
Depois de ouvir aquela senhora resmungar diversas vezes sobre a pouca qualidade da loja, sobre seu estado de mãe solteira, permitiu que a mulher fizesse sua troca para evitar maiores constrangimentos. A senhora, satisfeita com sua vitória, olhou-a com superioridade e sussurrou um “sim, mulheres descentes ainda tem valor”, e retirou-se.
Suspirou fundo e continuou seu trabalho. Ainda era 10h da manhã. Tinha um dia inteiro pela frente, e o mecânico ainda não ligara avisando sobre o concerto do carro. Ter carro velho era um problema, principalmente quando quebra inesperadamente pela manha. Tinha que correr para pegar os meninos na escola, e como provavelmente iria de ônibus, tinha que pedir para sair um pouco mais cedo. Levantou-se então para essa difícil tarefa.
-Senhor Carlos, posso entrar?
-Sim, mas antes pegue um café para mim... sem açúcar!
-Claro, claro – ela foi rapidamente até a mesa do lado de fora da sala e pegou o café.
-Então, gostaria de pedir para sair um pouco mais cedo. Meus filhos estudam do outro lado da cidade e meu carro quebrou essa manha, terei de ir de ônibus...
- Humm. Não tem serviço acumulado?
- Não senhor.
- Saia mais cedo, mas ficará até mais tarde de noite. Tem umas contas que não estão batendo, vou precisar de sua opinião.
- claro, obrigada. Com licença.
Quando deu as costas e foi se retirando, ouviu-o dizer em voz baixa “mães solteiras, acham que podem lidar com tudo, coitadas”. Sentiu vontade de voltar e dizer-lhe que podia sim. Que trabalhava 44h/semanais, que fazia tortas de encomenda nos fins de semana, que aos seus filhos não faltava nada, que no dizer popular era mãe e pai ao mesmo tempo, que conseguia segurar as pontas sim, que não havia essa diferença que todos achavam ter. Mas não podia, era o dono do estabelecimento, e se ganhava pouco mesmo sendo gerente, menos ainda ganharia se voltasse a ser vendedora ou ainda se ficasse desempregada.
Guardou a raiva para si. Tinha dois filhos para criar, tinha que suportar o mundo olhando-a de canto de olho, tinha de suportar os comentários e ser apontada como “mãe solteira”.
Quando engravidou pela primeira vez o namorado deu-lhe as costas, não imaginava como seria sofrida a rotulação que a sociedade delimitara para pessoas como ela, na verdade, nem imaginava que a sociedade ainda visse assim mulheres que criavam sozinhas seus filhos. Mas a realidade era que era apontada, ouvia comentários ora diretos ora indiretos acerca da sua condição. Algumas vezes os olhares eram de pena, compaixão desnecessária. Com o segundo namorado, a mesma coisa, mas ao contrário do primeiro, este não se recusou a registrar a menina, somente a ajudar com as despesas.
Mas ela ia levando, dia após dia nesses nove anos. Ia aguentando os comentários dos familiares, mas qual era a diferença entre a família que constituíra e as outras? A ausência de um homem provedor? Mas ela provia, tinha casa para morar, comida, vestimentas para os filhos, não faltava nada, se esforçava para isso, e há dois anos após a promoção, conseguira colocar as crianças em um colégio particular lá mesmo no subúrbio onde moravam. Não havia o que reclamar, não faltava o essencial, mas porque as pessoas não viam isso e paravam de aponta-la como a “mãe solteira”, como coitadinha?
Perto das 11h pegou sua bolsa e foi para o ponto pegar um ônibus. Levaria os filhos para casa, e depois do almoço os deixaria fazendo as atividades. O menino, que era o mais velho, era bem maduro para a idade, então ela confiava de deixá-los em casa sozinhos, até porque sua mãe morava na casa de baixo e sempre dava uma “passadinha de olho” neles para ver se estudava tudo bem.
Voltou ao trabalho no período da tarde, e recebeu a ligação do mecânico dizendo que como não tinha uma das peças que dera defeito, ela só poderia pegar o carro no outro dia, final de tarde. Trabalhou até mais tarde, como combinado. Não havia tantas dificuldades nas contas que fizeram e antes das 20h ela já estava no ponto esperando um ônibus.
O ônibus não demorara. O caminho entre o ponto em que ela soltaria e sua casa era deserto, então antes de entrar no ônibus ela se prevenira pegando uma pedra para levar consigo como arma. Nunca se sabe o que pode acontecer por aquelas esquinas, e havia um estuprador a solta pelas redondezas.
Chegou em casa e os meninos ainda assistiam televisão. Preparou uma refeição rápida para eles e colocou-os para dormir. Olhou cada um em sua cama. Será que as pessoas não percebiam que eles também eram uma família? Não entendiam que ela não era nenhuma coitada por não ter um marido? As pessoas não viam como eles superavam as expectativas para uma família sem “pai provedor”? Eles estavam conseguindo até ali, eles iriam conseguir até o fim.
Lembrou-se da senhora que fora de manha fazer a troca das calcinhas. “Mãe solteira, vocês são todas assim”. Assim como, batalhadoras? Vencedoras em suas conquistas diárias? “Sim, talvez mães solteiras sejam todas assim”, ela pensou.
Deitou-se para dormir, o dia seguinte seria pesado novamente sem carro. Ouviu sua filha mais nova chama-la do quarto. Cansada, levantou-se. Quando perguntou para que a chamou foi surpreendida:
-Mãe, hoje me disseram que minha família não era uma família de verdade, que eu nem tinha pai – ela sentiu uma dor no peito, como se toda sua confiança fosse embora – mas eu disse que não me importo, que tenho família sim, tenho vocês, e eu te amo.
Ela chorou, chorou sem esconder a emoção. Foi até ela e beijou-a. Era bom ter uma família. Seu outro filho veio e abraçou-a também. Então pensou que mães solteiras são sempre assim, são mães de família, e não possuem razão de ser essas rotulações que lhe eram impostas. Mais uma vez lembrou-se da senhora e chegou à conclusão de que nunca mais deixaria que ninguém trocasse calcinhas, cada uma que soubesse o tamanho das calcinhas que usa, assim como ela sabia o tamanho de suas responsabilidades!