Podia
dizer que aquele era um dia estressante. Acordara fora do horário. O carro
estava quebrado. Levara os meninos atrasados para a escola. Fora repreendida
pelo atraso no trabalho, e agora uma senhora extremamente chata se achava no
direito de fazer troca de calcinhas quando havia um aviso enorme na loja
avisando que este tipo de troca não podia ser feita.
Era
difícil ser solteira aos 32 anos de idade. Era difícil ser mãe solteira de dois
filhos. Era difícil. Sua avó lhe avisara, tinha que fazer bom casamento. Uma
mulher sozinha era a pior coisa que tinha! Mas conseguia levar as coisas, até
agora tinha conseguido, era o que importava.
-Minha
senhora, não posso ajuda-la, são normas da loja, não fazemos este tipo de
trocas.
A
mulher olhou o porta-retratos na sua mesa e perguntou:
-Seus
filhos?
-Sim
– ela respondeu achando que a mulher desistira.
-
Hum, mãe solteira, vocês são todas assim – a mulher disse essas palavras olhando
para sua mão esquerda.
Espantou-se
com a comparação: que relação absurda era essa que ela fazia? Olhou-a como se
pedisse uma explicação para o comentário.
-
Não saio daqui sem fazer a minha troca!
- e realmente não saiu. Sentou-se um pouco mais afastado e avisou que
chamassem o dono do local, uma mera gerente, mãe solteira não a faria desistir
do seu direito.
Depois
de ouvir aquela senhora resmungar diversas vezes sobre a pouca qualidade da
loja, sobre seu estado de mãe solteira, permitiu que a mulher fizesse sua troca
para evitar maiores constrangimentos. A senhora, satisfeita com sua vitória,
olhou-a com superioridade e sussurrou um “sim, mulheres descentes ainda tem
valor”, e retirou-se.
Suspirou
fundo e continuou seu trabalho. Ainda era 10h da manhã. Tinha um dia inteiro
pela frente, e o mecânico ainda não ligara avisando sobre o concerto do carro. Ter
carro velho era um problema, principalmente quando quebra inesperadamente pela manha.
Tinha que correr para pegar os meninos na escola, e como provavelmente iria de ônibus,
tinha que pedir para sair um pouco mais cedo. Levantou-se então para essa difícil
tarefa.
-Senhor
Carlos, posso entrar?
-Sim,
mas antes pegue um café para mim... sem açúcar!
-Claro,
claro – ela foi rapidamente até a mesa do lado de fora da sala e pegou o café.
-Então,
gostaria de pedir para sair um pouco mais cedo. Meus filhos estudam do outro
lado da cidade e meu carro quebrou essa manha, terei de ir de ônibus...
-
Humm. Não tem serviço acumulado?
-
Não senhor.
-
Saia mais cedo, mas ficará até mais tarde de noite. Tem umas contas que não
estão batendo, vou precisar de sua opinião.
-
claro, obrigada. Com licença.
Quando
deu as costas e foi se retirando, ouviu-o dizer em voz baixa “mães solteiras,
acham que podem lidar com tudo, coitadas”. Sentiu vontade de voltar e dizer-lhe
que podia sim. Que trabalhava 44h/semanais, que fazia tortas de encomenda nos
fins de semana, que aos seus filhos não faltava nada, que no dizer popular era mãe
e pai ao mesmo tempo, que conseguia segurar as pontas sim, que não havia essa diferença
que todos achavam ter. Mas não podia, era o dono do estabelecimento, e se
ganhava pouco mesmo sendo gerente, menos ainda ganharia se voltasse a ser
vendedora ou ainda se ficasse desempregada.
Guardou
a raiva para si. Tinha dois filhos para criar, tinha que suportar o mundo
olhando-a de canto de olho, tinha de suportar os comentários e ser apontada
como “mãe solteira”.
Quando
engravidou pela primeira vez o namorado deu-lhe as costas, não imaginava como
seria sofrida a rotulação que a sociedade delimitara para pessoas como ela, na
verdade, nem imaginava que a sociedade ainda visse assim mulheres que criavam
sozinhas seus filhos. Mas a realidade era que era apontada, ouvia comentários ora
diretos ora indiretos acerca da sua condição. Algumas vezes os olhares eram de
pena, compaixão desnecessária. Com o segundo namorado, a mesma coisa, mas ao
contrário do primeiro, este não se recusou a registrar a menina, somente a
ajudar com as despesas.
Mas
ela ia levando, dia após dia nesses nove anos. Ia aguentando os comentários dos
familiares, mas qual era a diferença entre a família que constituíra e as
outras? A ausência de um homem provedor? Mas ela provia, tinha casa para morar,
comida, vestimentas para os filhos, não faltava nada, se esforçava para isso, e
há dois anos após a promoção, conseguira colocar as crianças em um colégio
particular lá mesmo no subúrbio onde moravam. Não havia o que reclamar, não
faltava o essencial, mas porque as pessoas não viam isso e paravam de aponta-la
como a “mãe solteira”, como coitadinha?
Perto
das 11h pegou sua bolsa e foi para o ponto pegar um ônibus. Levaria os filhos
para casa, e depois do almoço os deixaria fazendo as atividades. O menino, que
era o mais velho, era bem maduro para a idade, então ela confiava de deixá-los
em casa sozinhos, até porque sua mãe morava na casa de baixo e sempre dava uma “passadinha
de olho” neles para ver se estudava tudo bem.
Voltou
ao trabalho no período da tarde, e recebeu a ligação do mecânico dizendo que
como não tinha uma das peças que dera defeito, ela só poderia pegar o carro no
outro dia, final de tarde. Trabalhou até mais tarde, como combinado. Não havia
tantas dificuldades nas contas que fizeram e antes das 20h ela já estava no
ponto esperando um ônibus.
O
ônibus não demorara. O caminho entre o ponto em que ela soltaria e sua casa era
deserto, então antes de entrar no ônibus ela se prevenira pegando uma pedra
para levar consigo como arma. Nunca se sabe o que pode acontecer por aquelas
esquinas, e havia um estuprador a solta pelas redondezas.
Chegou
em casa e os meninos ainda assistiam televisão. Preparou uma refeição rápida para
eles e colocou-os para dormir. Olhou cada um em sua cama. Será que as pessoas
não percebiam que eles também eram uma família? Não entendiam que ela não era
nenhuma coitada por não ter um marido? As pessoas não viam como eles superavam
as expectativas para uma família sem “pai provedor”? Eles estavam conseguindo
até ali, eles iriam conseguir até o fim.
Lembrou-se
da senhora que fora de manha fazer a troca das calcinhas. “Mãe solteira, vocês são
todas assim”. Assim como, batalhadoras? Vencedoras em suas conquistas diárias? “Sim,
talvez mães solteiras sejam todas assim”, ela pensou.
Deitou-se
para dormir, o dia seguinte seria pesado novamente sem carro. Ouviu sua filha
mais nova chama-la do quarto. Cansada, levantou-se. Quando perguntou para que a
chamou foi surpreendida:
-Mãe,
hoje me disseram que minha família não era uma família de verdade, que eu nem
tinha pai – ela sentiu uma dor no peito, como se toda sua confiança fosse
embora – mas eu disse que não me importo, que tenho família sim, tenho vocês, e
eu te amo.
Ela
chorou, chorou sem esconder a emoção. Foi até ela e beijou-a. Era bom ter uma família.
Seu outro filho veio e abraçou-a também. Então pensou que mães solteiras são
sempre assim, são mães de família, e não possuem razão de ser essas rotulações
que lhe eram impostas. Mais uma vez lembrou-se da senhora e chegou à conclusão
de que nunca mais deixaria que ninguém trocasse calcinhas, cada uma que
soubesse o tamanho das calcinhas que usa, assim como ela sabia o tamanho de
suas responsabilidades!