quarta-feira, 24 de julho de 2013

Brincadeiras de menina

Contar-me é difícil. Cresci, é o que eu digo todos os dias diante do espelho. Cresci! Hoje não brinco mais de bonecas, de panelinhas, de casinha. Mas confesso que estas brincadeiras correspondem à parte da minha infância. Confesso que tudo o que eu já quis um dia foi uma bonequinha de verdade, um maridinho e saber cozinhar. Desejei tudo isso quando nem sabia realmente o que significaria em minha vida “tudo isso”.
“Mamãe, eu queria brincar lá fora. Não quero brincar de bonecas, isso não é brincadeira, mamãe. Pelo menos não é coisa divertida, já repreendi ela duas vezes porque não queria estudar a lição de casa junto comigo, e não gostei nenhum pouco porque ela chorou pedindo comidinha quando eu estava arrumando minha cama, ela tinha que entender que eu estava ocupada. E não quero mais aquelas panelinhas dali, não gosto de limpá-las depois de cozinhar, e queimei todo o feijão! Ahh, mamãe, eu quero brincar lá fora!”
O que eu ouvi foi que brincar lá fora é para os meninos. Brincar em casa é para meninas que no futuro serão mulheres descentes, comportadas, e farão ótimos casamentos.
Meninas não brincavam “lá fora”. Pega-pega faz você suar! Carrinho é para meninos, e mulheres são “barbeiras” no transito, por que será? Homens são um desastre na cozinha, e meninas de dez anos brincam de panelinha. Meninos jogam futebol, e quando crescem viram jogadores famosos, mulheres são “perna de pau” e futebol feminino não tem tanta repercussão. O bebe chorou? Dá ele para a mãe, o pai não tem muito jeito para cuidar de crianças não.
Não posso esquecer que meninas “gostam” de brincar de professora, adoram quadro e giz para simular uma escolinha. Elas cresceram e muitas viraram professoras de ensino fundamental quando poderiam ser qualquer outra coisa: advogadas, arquitetas, escritoras, agrônomas. Mas elas são professoras, é profissão para mulheres. Quase sempre tive “tias” na escola, não lembro de “tios”, ai fui à faculdade e tive professores e algumas raras professoras.
Eu cresci, casei, tive filhos. Fiz um ótimo casamento, pelo menos foi o que sempre me disseram, ouvi muitos “parabéns, você esta linda! Tirou a sorte grande, ele é um ótimo rapaz”. Tive um filho, e me disseram que eu nasci para a maternidade, acreditei, e tive mais dois. Tiraram meu sono, me fizeram feliz, me fizeram querer fazer tudo diferente, mas me fizeram querer fazer tudo sempre igual, porque uma família unida é o que mais importa.
Eu vivi, meus filhos vão crescendo, meu casamento capengando, as panelas no fogão, as provas de ciências para corrigir, e um sorriso pintado para parecer que isso é a felicidade. Disseram-me anos atrás que eu tirei a sorte grande, mas eu lavo, passo; eu varro, eu limpo, eu arrumo; costuro botão, limpo sapato. Eu cuido de criança, coloco termômetro e procuro remédio para febre; levo na escola, busco. Mas isso não é mais que minha obrigação, é coisa de mulher.
Não é bem uma reclamação o que eu aqui faço. É que talvez eu quisesse que as coisas fossem diferentes, talvez esse padrão não seja para todas nós, talvez algumas não queiram colocar a panela no fogo, não queiram ninar bebe, não queiram jogar buquê em casamento. Agora em meia idade eu penso que talvez quando jovem poderia ter vivido outras experiências, ter tomado outros rumos, ter construído outra vida. Mas não tive bem uma opção, não me disseram que eu podia escolher, apenas me ensinaram o que eu tinha que fazer, me ensinaram de forma didática, me ensinaram com brincadeiras! Mas talvez eu sonhasse com outras brincadeiras, talvez eu ansiasse por outro futuro.
“Não, minha filha, você não pode ir lá fora, a rua é para homens. Você deve ficar em casa, é uma menina recatada, tem que aprender como lidar com este espaço, um dia vai crescer e vai virar uma ‘dona de casa’! Aqui é o seu lugar”.

Talvez eu só quisesse outra brincadeira: brincar de pega-pega com meus sonhos...

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