terça-feira, 30 de julho de 2013

Cada um que saiba o tamanho das calcinhas que usa



Podia dizer que aquele era um dia estressante. Acordara fora do horário. O carro estava quebrado. Levara os meninos atrasados para a escola. Fora repreendida pelo atraso no trabalho, e agora uma senhora extremamente chata se achava no direito de fazer troca de calcinhas quando havia um aviso enorme na loja avisando que este tipo de troca não podia ser feita.
Era difícil ser solteira aos 32 anos de idade. Era difícil ser mãe solteira de dois filhos. Era difícil. Sua avó lhe avisara, tinha que fazer bom casamento. Uma mulher sozinha era a pior coisa que tinha! Mas conseguia levar as coisas, até agora tinha conseguido, era o que importava.
-Minha senhora, não posso ajuda-la, são normas da loja, não fazemos este tipo de trocas.
A mulher olhou o porta-retratos na sua mesa e perguntou:
-Seus filhos?
-Sim – ela respondeu achando que a mulher desistira.
- Hum, mãe solteira, vocês são todas assim – a mulher disse essas palavras olhando para sua mão esquerda.
Espantou-se com a comparação: que relação absurda era essa que ela fazia? Olhou-a como se pedisse uma explicação para o comentário.
- Não saio daqui sem fazer a minha troca!  - e realmente não saiu. Sentou-se um pouco mais afastado e avisou que chamassem o dono do local, uma mera gerente, mãe solteira não a faria desistir do seu direito.
Depois de ouvir aquela senhora resmungar diversas vezes sobre a pouca qualidade da loja, sobre seu estado de mãe solteira, permitiu que a mulher fizesse sua troca para evitar maiores constrangimentos. A senhora, satisfeita com sua vitória, olhou-a com superioridade e sussurrou um “sim, mulheres descentes ainda tem valor”, e retirou-se.
Suspirou fundo e continuou seu trabalho. Ainda era 10h da manhã. Tinha um dia inteiro pela frente, e o mecânico ainda não ligara avisando sobre o concerto do carro. Ter carro velho era um problema, principalmente quando quebra inesperadamente pela manha. Tinha que correr para pegar os meninos na escola, e como provavelmente iria de ônibus, tinha que pedir para sair um pouco mais cedo. Levantou-se então para essa difícil tarefa.
-Senhor Carlos, posso entrar?
-Sim, mas antes pegue um café para mim... sem açúcar!
-Claro, claro – ela foi rapidamente até a mesa do lado de fora da sala e pegou o café.
-Então, gostaria de pedir para sair um pouco mais cedo. Meus filhos estudam do outro lado da cidade e meu carro quebrou essa manha, terei de ir de ônibus...
- Humm. Não tem serviço acumulado?
- Não senhor.
- Saia mais cedo, mas ficará até mais tarde de noite. Tem umas contas que não estão batendo, vou precisar de sua opinião.
- claro, obrigada. Com licença.
Quando deu as costas e foi se retirando, ouviu-o dizer em voz baixa “mães solteiras, acham que podem lidar com tudo, coitadas”. Sentiu vontade de voltar e dizer-lhe que podia sim. Que trabalhava 44h/semanais, que fazia tortas de encomenda nos fins de semana, que aos seus filhos não faltava nada, que no dizer popular era mãe e pai ao mesmo tempo, que conseguia segurar as pontas sim, que não havia essa diferença que todos achavam ter. Mas não podia, era o dono do estabelecimento, e se ganhava pouco mesmo sendo gerente, menos ainda ganharia se voltasse a ser vendedora ou ainda se ficasse desempregada.
Guardou a raiva para si. Tinha dois filhos para criar, tinha que suportar o mundo olhando-a de canto de olho, tinha de suportar os comentários e ser apontada como “mãe solteira”.
Quando engravidou pela primeira vez o namorado deu-lhe as costas, não imaginava como seria sofrida a rotulação que a sociedade delimitara para pessoas como ela, na verdade, nem imaginava que a sociedade ainda visse assim mulheres que criavam sozinhas seus filhos. Mas a realidade era que era apontada, ouvia comentários ora diretos ora indiretos acerca da sua condição. Algumas vezes os olhares eram de pena, compaixão desnecessária. Com o segundo namorado, a mesma coisa, mas ao contrário do primeiro, este não se recusou a registrar a menina, somente a ajudar com as despesas.
Mas ela ia levando, dia após dia nesses nove anos. Ia aguentando os comentários dos familiares, mas qual era a diferença entre a família que constituíra e as outras? A ausência de um homem provedor? Mas ela provia, tinha casa para morar, comida, vestimentas para os filhos, não faltava nada, se esforçava para isso, e há dois anos após a promoção, conseguira colocar as crianças em um colégio particular lá mesmo no subúrbio onde moravam. Não havia o que reclamar, não faltava o essencial, mas porque as pessoas não viam isso e paravam de aponta-la como a “mãe solteira”, como coitadinha?
Perto das 11h pegou sua bolsa e foi para o ponto pegar um ônibus. Levaria os filhos para casa, e depois do almoço os deixaria fazendo as atividades. O menino, que era o mais velho, era bem maduro para a idade, então ela confiava de deixá-los em casa sozinhos, até porque sua mãe morava na casa de baixo e sempre dava uma “passadinha de olho” neles para ver se estudava tudo bem.
Voltou ao trabalho no período da tarde, e recebeu a ligação do mecânico dizendo que como não tinha uma das peças que dera defeito, ela só poderia pegar o carro no outro dia, final de tarde. Trabalhou até mais tarde, como combinado. Não havia tantas dificuldades nas contas que fizeram e antes das 20h ela já estava no ponto esperando um ônibus.
O ônibus não demorara. O caminho entre o ponto em que ela soltaria e sua casa era deserto, então antes de entrar no ônibus ela se prevenira pegando uma pedra para levar consigo como arma. Nunca se sabe o que pode acontecer por aquelas esquinas, e havia um estuprador a solta pelas redondezas.
Chegou em casa e os meninos ainda assistiam televisão. Preparou uma refeição rápida para eles e colocou-os para dormir. Olhou cada um em sua cama. Será que as pessoas não percebiam que eles também eram uma família? Não entendiam que ela não era nenhuma coitada por não ter um marido? As pessoas não viam como eles superavam as expectativas para uma família sem “pai provedor”? Eles estavam conseguindo até ali, eles iriam conseguir até o fim.
Lembrou-se da senhora que fora de manha fazer a troca das calcinhas. “Mãe solteira, vocês são todas assim”. Assim como, batalhadoras? Vencedoras em suas conquistas diárias? “Sim, talvez mães solteiras sejam todas assim”, ela pensou.
Deitou-se para dormir, o dia seguinte seria pesado novamente sem carro. Ouviu sua filha mais nova chama-la do quarto. Cansada, levantou-se. Quando perguntou para que a chamou foi surpreendida:
-Mãe, hoje me disseram que minha família não era uma família de verdade, que eu nem tinha pai – ela sentiu uma dor no peito, como se toda sua confiança fosse embora – mas eu disse que não me importo, que tenho família sim, tenho vocês, e eu te amo.
Ela chorou, chorou sem esconder a emoção. Foi até ela e beijou-a. Era bom ter uma família. Seu outro filho veio e abraçou-a também. Então pensou que mães solteiras são sempre assim, são mães de família, e não possuem razão de ser essas rotulações que lhe eram impostas. Mais uma vez lembrou-se da senhora e chegou à conclusão de que nunca mais deixaria que ninguém trocasse calcinhas, cada uma que soubesse o tamanho das calcinhas que usa, assim como ela sabia o tamanho de suas responsabilidades!


sábado, 27 de julho de 2013

Uma realidade pede uma festa

Era uma aliança bonita. Bem polida, de um dourado tão puro, ouro pesado, com finos acabamentos. Era sim uma aliança bonita! Tinha que exibi-la por onde quer que andasse, todos tinham que ver que era uma mulher comprometida, casada, muito bem casada!
Era feliz, pelo menos era o que diziam. Era também o que ela percebia pelo que lhe ensinaram que era bom. Então sorria a todos, sorria a todos os olhares! Era feliz. Podia fazer o que? Esbanjava felicidade por onde fosse. As pessoas gostavam de estar junto dela, era agradável.
Gostava de se arrumar, ser elegante. Fazer jantares para amigos em sua casa. Ah! Tinha a vida que sempre sonhara. Não tinha filhos, era verdade, mas hoje já não lamentava, conformara-se, afinal a vida tinha lhe dado outras coisas em troca. Dara a ela amigos e familiares ótimos, e um marido que superava em todos os aspectos qualquer príncipe. Um casamento de 27 anos! 53 anos de vida e muita felicidade!
Olhava o mundo ao seu redor e via como havia sido agraciada, como devia agradecer pela graça que lhe fora concedida. Então ajudava, ajudava qualquer um que precisasse de sua ajuda. Tinha que retribuir o fato de ser escolhida para a bonança da vida.
Não trabalhava, nem precisava. Deixasse o emprego para quem dele precisasse, pensava. Tinha tudo o que queria, casa confortável, joias, roupas belíssimas, 4 viagens internacionais por ano. Mas não só o material lhe era completo. Tinha amigos que lotavam sua casa, que lhe traziam alegria, boas conversas. Seus familiares lhe eram presentes, tinha sobrinhos que lhe eram como filhos!
Uma vida perfeita!
Essa mulher, aparentemente feliz, não percebia a fantasia na qual vivia. Passara seus anos de vida como se estivesse em um palco, tudo o que lhe era bom, não lhe era. E um dia, passou as coxias, viu o que havia por trás do cenário.
Passeava a carro certo dia. Era um dia de calor. Passava defronte a uma praia. As pessoas desfilavam de roupas de banho, óculos escuros, molhadas, com água de coco e pranchas de surf. Foi quando viu uma mulher sentada na calçada bem ao longe, do outro lado da rua. Era uma mulher relativamente nova, com dois filhos, roupas maltrapilhas, magros, sujos. Não se conteve, chorou. Estacionou o carro. Atravessou a rua. Dirigiu-se a mulher. Como alguém se atreveria a ser infeliz naquele mundo belo?
Quando chegou à mulher, educadamente questionou-a sobre o que lhe acontecera para que estivesse naquela situação. Tempos depois se questionara se realmente agira acertadamente, se lhe valera sair do seu mundo, cair tão despreparada em outro mundo.
A mulher que ela vira, casara por amor, tivera filhos, aqueles que ela via maltrapilhos e famintos. Tinha uma vida , a mesma que tinha qualquer mulher pobre: casa precária, pouca comida, nenhum conforto, mas algo ao menos tinha. Entretanto, seu marido, que trabalhava em uma loja de ferragens perdera o emprego por furtar peças, a vida estava difícil, o filho mais novo estava doente. Ela então olhou para o menino, ainda parecia um menino doente, frágil.
Desempregado, tornara-se mais agressivo, com ela, com os meninos, sobretudo o mais novo, que segundo ele era a causa de todos os problemas. Mas ela não podia deixa-lo, para onde iria? Ele ao menos ainda conseguia alguns bicos e vez ou outra trazia uns trocados para dentro de casa. Sozinha ela não podia fazer nada, tinha as crianças para tomar conta, não aprendera nunca a fazer nada. Sabia fazer faxina, mas parecia que ninguém nas redondezas tinha dinheiro sobrando para pagar uma diarista. Estava difícil.
Tudo piorou quando as agressões foram se tornando mais que frequentes, se tornaram diárias. Os trocados que antes ainda vinham como quilo de feijão começaram a virar apenas bebidas. E depois dividas com essas bebidas, ele não trabalhava mais, não procurava emprego, só bebia dizendo que pagaria depois. Quando viu que não teria como pagar, achou que seria apropriado vende-la na rua. Segundo ele, ela também tinha obrigação de contribuir para a “renda” familiar. Ela recusara-se, não faria isso, não podia. Resolveu sair de casa com os filhos.
A primeira semana ficou na casa de uma prima de segundo grau. Mas a prima não aceitou que ficasse mais. Um adulto e duas crianças aumentavam as despesas de uma forma que não podia suportar. Foi então que não teve para onde ir. Foi para as ruas mendigar com os filhos. Vezes conseguiam o suficiente para uma refeição. Outras nem isso. Já tinha sido abusada diversas vezes, era fraca, era mulher, o que podia fazer? Ir a delegacia? Quem se importava com um morador de rua? Pior, quem se importava com uma mulher mendiga? Para eles era apenas mais uma prostituta.
A madame, então, perplexa, olhou-a mais uma vez. Era uma mulher bonita mesmo suja e bagunçada, será que alguém já dissera isso a ela sem segundas intenções? Talvez não. Não sabia ao certo se poderia ajuda-la. Dez reais? Cinquenta? É, talvez cinquenta aliviasse um pouco o sofrimento. Tirou uma nota da carteira e entregou à mulher, quem saberia se contara a verdade?
Caminhando de volta para o carro, assim, como se recebesse uma descarga elétrica, olhou para trás e viu os três novamente. Não, aquela mulher contara-lhe toda a verdade. Contara-lhe não apenas a sua historia, contara-lhe a verdade do mundo sem lhe cobrar nada. Agora não podia ser mais a mesma. Abriu o carro, sentou-se.
Pobre mulher! Uma vida já lhe passara. O que fizera? Festas? Jantares? Sorrisos em ações sociais? O que fizera? Quanta superficialidade vivera! Um marido ideal? Ou um manipulador? Ele lhe entregara um mundo dito perfeito e omitiu a ela o que realmente o mundo era. Amigos ideias? Não! Encenadores que fizeram com que acreditasse que o mundo era belo! Familiares ideais ou aproveitadores? Ela mesma se omitira, enganara-se dia após dia. Era um turbilhão de ideias.
Uma vida lhe passara! O que faria agora? Aceitaria viver nesse mundo ou se esconderia em sua falsa realidade? Mesmo se escolhesse continuar a ser o que sempre fora, não haveria a mesma completude de suposta felicidade, agora sabia a verdade! Pegou o celular. Hesitou. Mas ela tinha seu próprio palco, para que ir para a rua? Ela tinha seu personagem, para que ir para trás das coxias? Olhou sua aliança, era uma aliança bonita! Discou um número.

-Ana, vamos dar uma festa?

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Até que a morte os separe

“ela se jogou da janela do quinto andar. Nada fácil de entender”
(Legião Urbana)


E ninguém sabia explicar. Parecia um casal equilibrado, de filhos educados, casa arrumada. Ninguém nunca ouvira uma briga sequer entre eles. Ninguém nunca vira uma roupa fora do lugar. Ninguém nunca presenciara uma reclamação, nenhum desabafo. Nada.
Mas havia um corpo ali, estirado no chão. A multidão já se avolumava no ambiente. Cada um supunha as coisas terem acontecido de uma forma diferente. Cada um contava um enredo distinto, e parecia que nenhum deles tinha nada a fazer, que tinham saído de suas casas apenas para ver a moça que se jogara do prédio.
O corpo no chão, agora o local já estava isolado para que ninguém alterasse o cenário. O marido chegara a pouco e falava ao celular um pouco choroso. Os filhos não estavam, ainda se encontravam na escola, afinal era fim de tarde. O sol já estava esfriando, seu brilho escurecendo. Havia pouco sangue sobre o chão.
O que fizera com que ela se jogasse pela janela? Quinto andar! Não haveria de ser para chamar atenção, era algo muito mais sério. Nem mesmo ali no apartamento ela deveria estar. Era empresária, dona de uma loja de decoração no centro da cidade. Não costumava ficar em casa durante as tardes. Na verdade, não costumava quase nunca estar em casa. Fazia viagens para comprar mercadorias, fazer cursos, inclusive no exterior. Era uma mulher independente, bem sucedida.
Entre as pessoas que estavam ali, e que pouco a pouco iam sabendo sobre a vida dela pelos vizinhos, as pessoas se indignavam, como poderia uma mulher que tinha tudo fazer uma coisa daquelas? Matar-se era coisa para quem não tem nada!
Mas parecia que havia algo estranho. Ela estava arrumada para sair, porque segundo o porteiro, ainda não havia passado pela portaria naquele dia. Havia marcas de lagrimas borrando a maquiagem. Mas ninguém ouvira nenhum som estranho, nenhuma voz alterada saindo do apartamento.
Mas em meio a multidão, um policial chamou o outro e mostrou uma marca no braço, ela tinha sido segurada com muita força por alguém. Mas também havia um hematoma próximo do joelho esquerdo, o que estava para cima e não tivera contato com o chão, provavelmente tinha caído no apartamento ainda, antes de se jogar pela janela.
Mas agora, desconfiava-se que ela não houvesse se jogado pela janela realmente, haveria sido empurrada por alguém? Não tinha como saber. Foi então que pediram as gravações do prédio, poderia ser encontrada alguma pista sobre o ocorrido.
Minutos após o acontecido, havia o marido saído do prédio, com expressão tensa. Foi preso para melhores investigações. Não havia duvidas de que ele era um dos maiores suspeitos, não podia ficar a solto sendo uma pessoa tão rica e influente.
Quando do interrogatório, disse que não tivera culpa. Ela estava o traindo há meses, ele contratara um detetive. Quando teve certeza levou as fotos e colocou sobre a cama. Ela viu, ficou desesperada. Ele dissera que contaria aos filhos que a mãe deles era uma “p**a”, que não respeitava o lar em que vivia. Ele sabia que era o mais certo a fazer. Disse-lhe ainda que pediria divorcio e a guarda dos filhos. Que uma “va******a” qualquer ficaria com seus filhos.
Ele parou, suspirou, fez expressão de choro mas conteve-se. Continuou a narrativa dizendo que ela ficara desesperada com tudo aquilo e partira para cima dele, ele tentou segurá-la, mas ela continuava tentando alcança-lo. Então a empurrou e ela caiu sobre uma cômoda, provavelmente lesionando o joelho esquerdo, porque cheia de raiva voltou-se mancando para cima dele.
Foi ai que ele parou. Parecia não saber mais o que falar. Mas:
- Então, acho que desesperada, ela se jogou pela janela. Que loucura, se jogar da janela do quinto andar. Eu... eu não ia fazer nada daquilo que tinha dito, eu a amava, eu amava nossa família.
O detetive que ele dissera ter contratado foi chamado a depor. Na ocasião do seu depoimento disse que naquele caso, não obtivera respostas. As fotos que levara para o cliente eram as fotos suspeitas que havia tirado, mas que não afirmara que este estava sendo traído, não podia afirmar tal coisa a partir de fotos de abraços em ambientes públicos, poderiam ser apenas amigos, se é que havia amizade entre homens e mulheres!
Mas não convencia a historia de que ela se jogara da janela, quem se jogaria de costas? Haveria de ser muito medo da morte, encara-la sem olha-la. Quem encara algo, tem que encarar por completo, tudo de uma vez.

As investigações seguiram, a sentença foi dada. Não havia duvidas de que ela fora jogada da janela do quinto andar. Não havia duvidas de que o motivo do assassinato fora ciúmes, posse sobre o que não é possível, fora a cultura de que homem esta certo e pode fazer o que bem entender com aquela que comprara no altar. Não havia duvidas de que seu assassino fora quem prometera protegê-la e ama-la, prometera estar com ela na alegria e na dor, saúde e doença. Das suas promessas, apenas uma ele cumpriu: esteve com ela ate que a morte os separasse!

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Virgem, Maria?

Vou lhes contar a história de Maria, a mulher enganada. Eu deveria alertar-lhes dizendo que a historia de Maria é a história de muitas brasileiras, que isso ainda acontece não apenas em pequenas cidades, não somente em famílias simples, esta história acontece em qualquer lugar onde ainda se louve o patriarcado, mas creio que por si só perceberá como é comum essa historia.
Teve o primeiro namoradinho, depois outro e outro. Cresceu, teve um, dois, três namorados. Até que com um, a paixão foi tão intensa, houve algo além do que denominavam de amor, houve desejo. Poderia relatar-lhes pormenores dessa história, afinal não há ninguém que tenha Maria como conhecida que não saiba esses pormenores, sem que ela nunca tenha confirmado nada. Mas não quero ser mais um a expor suas intimidades, expor sua vida.
Conto-lhes apenas o essencial para que não sejamos tolos a ponto de afirmar que hoje mulheres como Maria possuem liberdade.  
Pois com esse namorado Maria acreditava que seria para sempre, seria para valer, ter filhos, casar e ser feliz. Essas coisas que moçoilas entre os vinte e vinte e cinco anos sempre pensam. Ele lhe parecia sincero, parecia um homem respeitador, honesto. Então seguiram o namoro.
Maria desde cedo começara a trabalhar, antes era apenas mais uma atendente da loja, mas sua dedicação era tamanha que se tornara gerente de setor. Estava para terminar a graduação que pagava muito esforçadamente, e um curso de aperfeiçoamento indicado pela empresa onde trabalhava. Seus pais pareciam ter orgulho dela.
Ainda não tinha condições de casar, isso era certo, então seguia morando com os pais em uma casa modesta não muito distante do centro da cidade. Moravam ali há muito tempo, talvez desde que nascera, mas por certo crescera ali, era conhecida de todos, embora não gostassem verdadeiramente dela, há pessoas que não gostam daqueles que progridem.
O namoro ia seguindo, seguindo muito bem, obrigado. Faziam planos, sorriam, pareciam felizes por estarem juntos. Mas o que um conservador bufão qualquer diria, “colocaram a carroça na frente dos bois”. Pois é, Maria “perdeu a virgindade”.
Para ela, não havia nada de errado com o acontecimento, era uma moça esclarecida, que acreditava na liberdade sobre seu corpo. Talvez não tivesse um conhecimento cientifico tão apurado para falar sobre dominação de gênero e essas coisas todas que um sociólogo diga com tanta propriedade, mas na sua forma simples de pensar ela sabia que não havia nada de errado.
Devido ao fato, ela não achou que devesse adiantar ideias sobre casamento, isso sim seria a seu ver colocar uma carroça a frente dos bois, então seu namoro seguiu sendo o mesmo, agora apenas cuidando-se para que nada inesperado acontecesse.
Mas, não sei ao certo como, seus pais tiveram conhecimento sobre o fato, e não apenas seus pais, mas os conhecidos também. Todos os méritos de Maria desapareceram de uma só vez. Não importavam suas conquistas, apenas importava o que havia acontecido, importava agora que não tinha valor, era produto sem lacre, era lixo.
Seus pais chamaram-na para uma conversa, mas a conversa não foi tão boa assim, disseram a ela que ninguém mais iria querer ela para um casamento, e que se talvez um dia cassasse, sofreria a vida inteira por não ser virgem quando do casamento. Disseram que aquele rapaz que hoje a namorava não iria por certo casar-se com ela se isso fosse verdade. Que mulheres tinham que conservar-se virgens até o casamento, essa era a ordem natural das coisas. Por fim, seu pai, ainda esperançoso de que tudo fosse mentira, perguntou:
-Virgem, Maria?
-Não virgem Maria, respondeu Maria e baixou a cabeça.
Então todo o discurso continuou, mas ela não conseguia entender porque o destino de homens e mulheres era tão diferente, porque ela, logo ela que todos diziam fazer parte do “sexo frágil” tinha que ser mais forte a ponto de remar contra a verdadeira ordem natural. Não conseguia compreender porque agora era menos se ela, Maria, não se sentia menos que ninguém.
Seus pais falaram então de casamento. Chamaram o rapaz para conversar, mas ele parecia não querer casar-se. Maria não sabia se aquilo tudo era verdade. Como poderiam todas aquelas coisas estarem acontecendo? O rapaz se explicara dizendo que pretendia casar-se sim com Maria, mas não naquele momento, não tinham condições ainda para isso.
Foi assim que ele deu um boa noite a todos e retirou-se. Quando este saiu, os pais de Maria voltaram a lhe dizer todas as coisas ditas anteriormente e disseram-lhe que a recusa a casamento imediato era a maior prova de que lhe diziam a verdade.
Em meio ao desgosto, pai e mãe retiraram-se para dormir.
Maria tomou banho, pegou sua melhor roupa, vestiu-se. Passou-se do perfume mais delicado, maquiou-se como se fosse a uma festa. Calçou um salto alto que nunca usara. Analisou seu tamanho e o tamanho da porta do quarto. Era maior que ela, bastava. Até uma porta podia ser mais que ela naquele momento. Penteou os cabelos, prendeu-os com uma presilha de pedrinhas. Parecia bela.
Foi assim que foi a cozinha, apanhou-se de uma faca afiada e manchou seu vestido de sangue.
De manha quando sua mãe levantou-se para aprontar o café, soltou um grito aterrorizado. Havia uma bela moça morta no chão da cozinha, e uma frase escrita com sangue na parede: “terminei de retirar o lacre”.
Logo todos sabiam do destino triste de Maria. Mas o que ninguém sabia era que Maria era uma moça que havia sido enganada, disseram-lhe que não tinha mais valor, disseram-lhe que era produto, que não havia mais nada para ela, e ela acreditou. Maria, a enganada. Maria, a não virgem. Maria, a suicida.
Ela morreu como se fosse a um baile. Sua historia é contada como se fosse mais uma fofoca de rua. E muitas outras mulheres ainda seguem esse mesmo destino, sem saber que meia liberdade não é liberdade.
E hoje, em algum lugar, achando ser virgindade algo mais que dominação e opressão, alguém ainda pergunta:
- Virgem, Maria?

E toda a coisificação de uma mulher continua...

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Brincadeiras de menina

Contar-me é difícil. Cresci, é o que eu digo todos os dias diante do espelho. Cresci! Hoje não brinco mais de bonecas, de panelinhas, de casinha. Mas confesso que estas brincadeiras correspondem à parte da minha infância. Confesso que tudo o que eu já quis um dia foi uma bonequinha de verdade, um maridinho e saber cozinhar. Desejei tudo isso quando nem sabia realmente o que significaria em minha vida “tudo isso”.
“Mamãe, eu queria brincar lá fora. Não quero brincar de bonecas, isso não é brincadeira, mamãe. Pelo menos não é coisa divertida, já repreendi ela duas vezes porque não queria estudar a lição de casa junto comigo, e não gostei nenhum pouco porque ela chorou pedindo comidinha quando eu estava arrumando minha cama, ela tinha que entender que eu estava ocupada. E não quero mais aquelas panelinhas dali, não gosto de limpá-las depois de cozinhar, e queimei todo o feijão! Ahh, mamãe, eu quero brincar lá fora!”
O que eu ouvi foi que brincar lá fora é para os meninos. Brincar em casa é para meninas que no futuro serão mulheres descentes, comportadas, e farão ótimos casamentos.
Meninas não brincavam “lá fora”. Pega-pega faz você suar! Carrinho é para meninos, e mulheres são “barbeiras” no transito, por que será? Homens são um desastre na cozinha, e meninas de dez anos brincam de panelinha. Meninos jogam futebol, e quando crescem viram jogadores famosos, mulheres são “perna de pau” e futebol feminino não tem tanta repercussão. O bebe chorou? Dá ele para a mãe, o pai não tem muito jeito para cuidar de crianças não.
Não posso esquecer que meninas “gostam” de brincar de professora, adoram quadro e giz para simular uma escolinha. Elas cresceram e muitas viraram professoras de ensino fundamental quando poderiam ser qualquer outra coisa: advogadas, arquitetas, escritoras, agrônomas. Mas elas são professoras, é profissão para mulheres. Quase sempre tive “tias” na escola, não lembro de “tios”, ai fui à faculdade e tive professores e algumas raras professoras.
Eu cresci, casei, tive filhos. Fiz um ótimo casamento, pelo menos foi o que sempre me disseram, ouvi muitos “parabéns, você esta linda! Tirou a sorte grande, ele é um ótimo rapaz”. Tive um filho, e me disseram que eu nasci para a maternidade, acreditei, e tive mais dois. Tiraram meu sono, me fizeram feliz, me fizeram querer fazer tudo diferente, mas me fizeram querer fazer tudo sempre igual, porque uma família unida é o que mais importa.
Eu vivi, meus filhos vão crescendo, meu casamento capengando, as panelas no fogão, as provas de ciências para corrigir, e um sorriso pintado para parecer que isso é a felicidade. Disseram-me anos atrás que eu tirei a sorte grande, mas eu lavo, passo; eu varro, eu limpo, eu arrumo; costuro botão, limpo sapato. Eu cuido de criança, coloco termômetro e procuro remédio para febre; levo na escola, busco. Mas isso não é mais que minha obrigação, é coisa de mulher.
Não é bem uma reclamação o que eu aqui faço. É que talvez eu quisesse que as coisas fossem diferentes, talvez esse padrão não seja para todas nós, talvez algumas não queiram colocar a panela no fogo, não queiram ninar bebe, não queiram jogar buquê em casamento. Agora em meia idade eu penso que talvez quando jovem poderia ter vivido outras experiências, ter tomado outros rumos, ter construído outra vida. Mas não tive bem uma opção, não me disseram que eu podia escolher, apenas me ensinaram o que eu tinha que fazer, me ensinaram de forma didática, me ensinaram com brincadeiras! Mas talvez eu sonhasse com outras brincadeiras, talvez eu ansiasse por outro futuro.
“Não, minha filha, você não pode ir lá fora, a rua é para homens. Você deve ficar em casa, é uma menina recatada, tem que aprender como lidar com este espaço, um dia vai crescer e vai virar uma ‘dona de casa’! Aqui é o seu lugar”.

Talvez eu só quisesse outra brincadeira: brincar de pega-pega com meus sonhos...

terça-feira, 23 de julho de 2013

Nunca esqueça o guarda-chuva em casa



Resolveu contar, e desde que saíra de casa já era o quinto homem que a interceptava na rua com gracejos. Um até se atrevera a alisar seu braço! Outro lhe soltara beijinhos jocosos. Lembrou-se então dos conselhos que sua mãe sempre lhe dava:
- Meninas direitas não usam “tomara que caia”, olha o nome, que vadio! Moças de família não pintam as unhas de vermelho, não passam muita maquiagem, não usam roupas que marquem tanto as curvas. Minha filha, moças respeitadas não se vestem assim.
Talvez ela não fosse uma menina direita, talvez sua mãe estivesse certa. Talvez o destino de uma mulher fosse mesmo se vestir para ficar em casa. Quem sabe um avental fosse a mais elegante vestimenta para uma mulher.
Trabalhava muito, dia após dia, não descansava nem mesmo em feriados. Era recepcionista de uma clinica odontológica, nos fins de semana vendia roupas seminovas em um brechó na feira, e ainda produtos AVON. Quando tinha tempo, estudava um pouco, ainda alimentava o sonho de passar no vestibular. Sua vida era corrida, seu destino sofrido, tinha origem pobre, mas não se abatia, persistia porque sabia que apenas os que não desistiam podiam conseguir.
Não entendia como que a sua roupa, sua maquiagem, suas unhas podiam dizer tanto sobre ela. E pior: dizer coisas tão erradas. Como sua aparência podia ser mais que seus atos, que seus valores? Saíra de casa e se dirigia ao ponto de ônibus questionando-se de forma simplória como e por quê era menos que o cara encostado ao muro que a chamara de gostosa e a convidara para ir ao motel.
Sentira-se ofendida com convite, mas ela era mulher, não podia dizer nada. Moças que prestam não retrucam, não brigam, moças direitas abaixam a cabeça e seguem, ela seguiu.
Era meia tarde. Esperava que o ônibus passasse logo, estava quase atrasada. Recebera o telefonema muito em cima da hora, nem sabia se chegaria a tempo, mas tinha que tentar. Nada de ônibus. O céu estava nublado, mas esquecera do guarda-chuva. Um dia lhe disseram que mulheres andam preparadas, são prevenidas, sempre tem guarda-chuva. Mas ela não tinha, não estava preparada, talvez não fosse uma boa mulher.
O ônibus demorava a passar. Estava distraída pensando nos conselhos da mãe. Gostava de se vestir assim. Gostava de tomara que caia, de blusas um pouco mais apertadas, de unhas vermelhas, gostava de batons vermelhos também. Não gostava por vulgaridade, ou porque queria que todos a olhassem, simplesmente gostava.
Mas agora vestia uma blusa branca de tecido fino, calças jeans comum, nada da sua roupa era de marca, não tinha dinheiro para isso. Seu batom era discreto, sua maquiagem toda na verdade era discreta. Seu cabelo levemente preso em um rabo de cavalo pouco bagunçado para parecer natural. Seus brincos eram pequenos, seu colar com pingente em forma de coração era pura delicadeza. Não se sentia nem poderia ser tida como vulgar.
Talvez se corresse um pouco ainda conseguisse chegar a tempo de entregar os documentos. Poderia explicar que tivera que tomar condução para chegar ali, que a ligação chegara um pouco tarde, mas que fizera o que pode, que morava muito longe para tomar um taxi, talvez a entendessem.
Foi então que repentinamente, sem que pudesse ver de onde surgiu, um carro parou a sua frente. Dois rapazes sorriram para ela. Não os conhecia embora um deles fosse o que a convidara para ir ao motel instantes atrás, ignorou. O ônibus não passava, estava sozinha no ponto, olhou para os lados, não havia mais ninguém. Pensou em correr, mas eles não tinham feito nada. Pensou que talvez o ônibus estivesse para chegar, que se saísse poderia perder o ônibus e assim perder sua chance no novo emprego.
Mas no meio da indecisão, sem tempo para tomar uma decisão firme, já estava dentro do carro. Foi muito rápido como eles a agarraram e jogaram para dentro. Pensou em gritar, então gritou. Mas não era uma boa alternativa, não soube nem de onde veio o murro que a fez desmaiar.
Quando acordou estava em um lugar desconhecido. Deitada sobre um chão sujo, em um ambiente fedido, um lugar horrível. Quando percebeu estava com algumas marcas sobre o corpo. Olhou, agora não eram mais dois homens, mas três. Eles discutiam quem seria o primeiro, ser o primeiro, segundo um deles, sempre era melhor. Perguntou-se “primeiro a quê”? E o porque de ser melhor. Sentiu um calafrio, tinha medo. Não conhecia o lugar e não sabia o que fazer. Aos poucos foi levantando sem fazer zoada, mas viram que ela tinha acordado. Então um veio em direção a ela:
-Eu serei o primeiro, na próxima ficam vocês. Essa p*** é minha. Depois vai você e você – e apontou para cada um dos outros enquanto falava.
Ela desesperou-se. Não podia ser! Não podia! Sua vida estava para melhorar, novo emprego ia conseguir, ia ganhar mais, ajudar a mãe a fazer as reformas que ela tanto queria. Não podia ser.
Então ele abriu a barguilha da calça, sorriu para ela. Ele não tinha os dentes do canto esquerdo, tanto em cima quanto embaixo. Puxou-a pelos cabelos, ela gritou, tentou bater nele,mas parecia não adiantar.
Ele empurrou-a contra a parede e exibiu para ela o que acabara de retirar de dentro das calças. Sorriu novamente. Veio mais perto e a cheirou, ela tentou bater novamente, mas apanhou. Uma pancada na cabeça que a deixou tonta, caiu no chão. Então ele tirou sua calça, rasgou sua blusa, subiu nela, abriu-lhe as pernas e adentrou-a. Ela chorava, tentava acertá-lo, tentava se defender, mas ele continuou a entrar nela sem que pudesse fazer nada. Sentia a dor, chorava, gritava, tentava fazê-lo parar, mas ela era só uma mulher. Era frágil, não conseguiu se libertar.
Pensou nas coisas que sua mãe lhe falara. Não, sua roupa não importava. Importava apenas a ideia que tinham criado sobre ela, sobre as outras mulheres. Importava apenas quem ditava as regras do jogo, e eram eles, eram eles não apenas porque eram mais fortes, mas porque a ideia de que eram eles que estavam certos que fazia com que ela estivesse ali. Era um produto que podia ser vendido, trocado, roubado. Era um produto para ser usado e não importava a roupa que estivesse vestindo, não importavam suas intenções, sua idade, suas aspirações, importava apenas que era mulher, e mulher era produto.
Depois vieram os outros dois, e por fim, sem forças para levantar, sem conseguir gritar, não podia nem mesmo chorar, ela ficou ali caída sobre o chão, sangrando. Mas ela os tinha visto, então eles voltaram. Estava desesperada embora imóvel no chão. Um deles aproximou-se e disparou a arma duas vezes, um na cabeça e outro no peito.
Aquele fim de tarde realmente era de chuva, e as primeiras gotas de água começaram a cair sobre seu corpo. Talvez ela não fosse uma boa mulher, tinha saído de casa sem guarda-chuva.