segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Redenção

Era um dia chuvoso na primavera de 1756 e Adélia acordou feliz, após ter consumado a primeira noite de amor com seu único e eterno homem, o negro forte e bonito José. Levava uma vida miserável trabalhando incansavelmente na plantação, na casa da sinházinha e na senzala, mas apresentava um sorriso enorme que só sonhadores podem ter. Beirava os 15 - pelo menos é o que lhe diziam os mais velhos - e carregava no peito todo amor que nunca havia recebido até aparecer José, comprado da fazenda vizinha e cobiçado por todas as outras negras. De ancas largas, cabelos pretos cacheados e cheios, formosa na flor da juventude, Adélia parecia imersa em um mundo encantado, imaginado por ela pra esconder toda a realidade degradante que levavam. Trabalhou como nunca, ajudou Ana e Sinhá Vitória a se vestir para ir a missa, aprontou as galinhas para o jantar e limpou as feridas de Damião -açoitado a mando de Coronel Antônio. Mas nem o cansaço lhe tirava a felicidade, aquele era o melhor dia de sua vida, e ah, José agora era seu, só seu, pra sempre! E nada mais lhe importava. Mas veio a noite, veio o chamado da Casa Grande, veio o Coronel Antônio, veio os medos, o animal-homem. Veio o monstro a lhe arrancar a blusa, a invadir seu corpo, a lhe tomar seu sorriso e sua felicidade. Veio o sangue entre as pernas, veio a humilhação. E veio a dor que nunca sentira antes, veio a realidade a rasgar seus sonhos, veio bater a sua cara o fim da fantasia. Estava agora no chão da cozinha, jogada como bicho, emaranhada, soluçando em choro silencioso, oca, sem vida, sozinha. Seu olhar alcançou a faca em cima da mesa, veio a força e veio novamente o sangue. Seu coração rasgado de dor agora rasgava-se de faca. Veio José, delirava Adélia, balbuciava gemidos quase inaudíveis, José gritava, jurava vingança, mas a dor vinha ainda mais. - Eu te amo, eu te amo! foi o que conseguiu dizer e tudo se apagou. Tudo sumiu. E José dizia não me deixe, e eu tambem te amo, e não posso viver sem você, e não era vingança, não era ódio, mas era amor, amor o consumia, e ele arrancou a faca do peito de sua amada e cravou na própria alma, no próprio corpo, em busca de seu amor, em busca de sua mulher. E veio o sangue, um rio de sangue, uma união de sangue. E o sangue dos dois se misturaram, e os corpos mortos abraçados, selados num beijo de morte, jaziam no chão da cozinha, e a primavera se enchia de cores, e veio a chuva e veio o nada, veio o reencontro, veio a redenção. E as almas vagaram juntas rumo ao paraíso, e nada mais importava, e tudo era luz, e tudo era fantasia, e tudo era sonho de Adélia, e tudo era belo e tudo era amor, e delírio. E José era seu, ah, era seu, pra sempre, pra sempre!



[Escrevi esse texto em 2011, e sei que meio que foge aos padrões do blog, mas acho que foi uma das coisas mais bonitas que já escrevi até hoje. Era 1756, mas podia perfeitamente ser 2013. Adélia, assim como a personagem do 1° texto, são só mais uma das mulheres coisificadas, usadas e massacradas por um machismo lixo que ainda encontra-se arraigado em nossa sociedade.]

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